José Saramago, "Ensaio sobre a Cegueira"

siiky

2023/11/01

2023/11/02

2023/11/09

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(...) Felizmente, como a história humana tem mostrado, não é raro que uma coisa má traga consigo uma coisa boa, fala-se menos das coisas más trazidas pelas coisas boas, assim andam as contradições do nosso mundo, merecem umas mais consideração do que as outras, (...)

p. 207

(...) Passou-se assim uma hora, aquilo era como uma felicidade, sob a luz suavíssima os próprios rostos encardidos pareciam lavados, brilhavam os olhos dos que não dormiam, o primeiro cego procurou a mão da mulher e apertou-a, por este gesto se observa quanto o descanso do corpo pode contribuir para a harmonia dos espíritos. (...)

p. 261

(...) A razia só não era completa porque em mercearias das antigas ainda se podia encontrar algum feijão ou algum grão-de-bico nas tulhas, são leguminosas que levam muito tempo a cozer, ele é a água, ele é o combustível, por isso o crédigo que agora tem é tão escasso. Não era a mulher do médico particularmente dada à mania predicativa dos provérbios, em todo o caso, algo dessas ciências antigas lhe devia ter ficado na lembrança, a prova foi ter enchido de feijões e gravanços dois dos sacos de plástico que levavam, Guarda o que não presta, encontrarás o que é preciso, dissera-lhe uma avó, no fim das contas a á em que os pusesse de molho também serviria para cozê-los, e a que restasse da cozedura teria deixado de ser água para tornar-se caldo. Não é só na natureza que algumas vezes nem tudo se perde e algo se aproveita.

p. 273

(...) Como foi que viveram desde que principiou a epidemia, Saímos do internamento há três dias, Ah, são dos que foram postos de quarentena, Sim, Foi duro, Seria dizer pouco, Horrível, O senhor é escritor, tem, como disse há pouco, obrigação de conhecer as palavras, portanto sabe que os adjectivos não nos servem de nada, se uma pessoa mata outra, por exemplo, seria melhor enunciá-lo assim, simplesmente, e confiar que o horror do acto, só por si, fosse tão chocante que nos dispensasse de dizer que foi horrível, Quer dizer que temos palavras a mais, Quero dizer que temos sentimentos a menos, Ou temo-los mas deixamos de usar as palavras que os expressam, E portanto perdemo-los, (...)

p. 277