Vergílio Ferreira, "Aparição"

siiky

2023/11/04

2023/11/14

2023/11/14

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Portanto, eu tinha um problema: justificar a vida em face da inverosimilhança da morte. E nunca mais até hoje eu soube inventar outro. De que poderia falar na conferência? Nada mais ha na vida do que beber até ao fim o vinho da iluminação e renascer outra vez. Riqueza ou miséria, ciência, flória, vexame, e a política e até a arte para tantos artists, conhecimento do homem no corpo e no espírito -- quantos modos de esquecer ou de não saber ainda o pequeno problema funcamental. Mas o que é extraordinário e me exaspera é que eu próprio tenha precisado de uma vida inteira para o saber. E quantas vezes agora o esqueço? O mais forte em nós é esta voz mineral, de fósseis, de pedras, de esquecimento. Ela germina no homem e faz-lhe pedras de tudo. Assim, quando procuro em mim a face original da minha presença no mundo, o que descubro não é o alarme da evidência, o prodígio angustioso da minha condição: o que descubro quase sempre é a indiferença bruta de uma coisa entre coisas. Eis-me aqui escrevendo pela noite fora, devastado de Inverno. Eis-me procurando a verdade primitiva de Mim, verdade não contaminada ainda da indiferença. Mas onde esse sobressalto de um homem jogado à vida no acaso infinitesimal do universo? Se meu pai não tivesse conhecido minha mão; se os pais de ambos se não tivessem conhecido; sa há cem anos, há mil anos, há milhares e milhares de anos um certo homem não tivesse conhecido certa mulher; se... Nesta cadeia de biliões e biliões de acasos, eis que um homem surge à face da Terra, elo perdido entre a infinidade de elos, de encruzilhadas -- e esse homem sou eu...



E todavia, agora que me descubro vivo, agora que me penso, me sinto, me projecto nesta noite de vento, de estrelas, agora que me sei desde uma distância infinita, me reconheço não limitado por nada mas presente a mim próprio como se fosse o próprio mundo que sou eu, agora nada entendo da minha contingência. Como pensar que «eu poderia não existir»? Quando digo «eu», já estou vivo... Como entender que esta iluminação que sou eu, esta evidência axiomática que é a minha presença a mim próprio, esta fulguração sem princípio que é eu estar sendo, como entender que pudesse «não existir»? Como pensar que é nada? A minha vida é eterna porque é só a presença dela a si própria, é a sua evidente necessidade, é ser eu, EU, esta brutal iluminaça de mim e do mundo, puro acto de me ver em mim este SER que irradia desde o seu mais longínquo jacto de aparição, este SER-SER que me fascina e às vezes me angustia de terror... E todavia eu sei que «isto» nasceu para o silêncio sem fim...



Como tu, meu velho. Aí estás à beira da cova, na urna aberta, para te reconhecermos pela última vez. Onde a tua pessoa, onde o que eras tu? Passam pela estrada os carros chiando. Vêm das vinhas, das vindimas, trazem o aroma da terra e da vida. Mas tu agora és apenas a tua imagem. Que é de ti? Ouço para lá dos teus lábios cerrados a tua palavra grave, vejo as tuas mãos erguerem-se, povoadas de um gesto que eras tu. Não! Quem te habitava não é. Viverás ainda na memória dos que te conheceram. Depois esses hão-de morrer. Depois serás exactamente um nada, como se não tivesses nascido. QUantos crimes, vexames, remorsos, alegrias e projectos e traições e castigos e prémios e tudo e tudo nos milhões de homens que passaram noutros séculos por esta pequena aldeia e souberam os seus sítios e a montanha e a ribeira e se souberam daqui e disseram «esta casa é minha, esta terra é minha» e sentiram a aura de tudo isto, destes ventos, destas noites, e são hoje o nada integral, absoluto, pura ausência, nada-nada? Eis que começa a tua longa viagem para a vertigem das eras, para a desaparição do silêncio dos milénios. Sim, agora ainda vives para mim porque te sei.

p. 49-51, opening of Ch. IV

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