siiky
2024/07/24
2024/07/31
2024/07/31
book,art,culture,society,pt
Todavia, o acto de mediar também subtrai algo de muito valioso à experiência de fruição, uma vez que, quando é descrita e explicada por mim, a beleza do Requiem deixa de ser imediata -- no verdadeiro sentido da palavra, que significa «sem mediação» -- e passa a estar filtrada pela minha lente de mediador.
p. 14
Debray faz a crítica daquilo a que chama «o idiota de Veneza», que tenta despachar dois objectivos num só gesto ao juntar o turismo e as férias, actividades que, em boa verdade, são bem diferentes. De acordo com Debray, «o turista esquece-se a si próprio para descobrir o vasto mundo. Quem vai de férias pretende esquecer o mundo e encontrar-se a si próprio».
Duas abordagens irreconciliáveis que, diga o leitor se não é verdade, qualquer visitante incauto acabará por tentar juntar ao planear a sua viagem a Veneza. Também é a razão pela qual tantas vezes acontece irmos de férias e voltarmos a casa mais cansados do que quando partimos.
p. 33
O polido, limpo, liso e impecável é o sinal de identidade da época actual. É aquilo em que coincidem as esculturas de Jeff Koons, os iPhones e a depilação brasileira. Porque é que o polido nos atrai? Além do seu efeito estético, reflecte um imperativo social geral: incarna a actual sociedade positiva. O que é polido e impecável não dói. També não oferee qualquer resistência. Solicita-nos um Gosto. O objecto polido anula qualquer coisa que possa confrontá-lo. Toda a negatividade é assim eliminada.*
* Byung-Chul Han, A Salvação do Belo, Relógio d'Água, 2015.
p. 55
O museu encoraja (e bem!) a interacção por esta via e até a cultura das selfies. Porque o museu sabe que uma selfie é uma manifestação da sensação de pertença. Uma pessoa faz uma selfie quando quer mostrar que esteve aqui, com esta pessoa, a comer esta comida ou a ter esta experiência. No caso do museu, uma selfie com uma obra de arte significa que «também faço parte» daquilo que vejo. A obra de arte confirma quem sou e confirma que este é o meu lugar. E, para que seja uma transacção justa, a selfie também legitima e confirma que aquele é o lugar social da obra de arte. Esta sensação de que tudo está certo lê-se na fotografia do casal de jovens que se vestiu acidentalmente com camisolas com as cores da tela de Mark Rothko.
p. 57
Sounds like a whole bunch of bullshit...
Enfim, dizia que numa cidade como Chicago, onde ao caminhar se dá um pontapé acidental numa pedra e se descobre que era uma obra de arte contemporânea, a verdade é que a maior parte das pessoas que interagem com o Cloud Gate não está ocupada com o pensamento de que aquilo é uma obra de arte.
p. 59
Maybe "contemporary art" is also a whole bunch of bullshit. Either that, or dog the creator was the most prolific of artists.
Nunca esquecerei o comentário que alguém escreveu num vídeo no YouTube onde Boulez dirige A Sagração da Primavera, de Igor Stravinsky: «Para mais emoção, recomendo uma versão em MIDI.»
p. 110
Podem referir-se as mais diversas causas para os reveses na carreira de Camões, como a generalizada falta de sensibilidade artística na corte, intrigas palacianas, inveja de rivais, gestos irreflectidos por parte do poeta ou a sua falta de tacto social. É porém inegável que, enquanto o autor é vivo, é difícil que aqueles que o rodeiam consigam dissociar a obra da conduta pessoal, sendo frequente que as duas coisas acabem misturadas para sua desgraça, o que parece ter sido precisamente o caso de Camões. Quando assim é, e em vida o artista tem os principais caminhos da carreira vedados por circunstâncias mundanas, dificillmente lhe restam opções que que não confiar na glória póstuma, quando todos os que o conheceram já tiverem morrido e não puderem exercer a menor influência sorbe a apreciação do seu legado, esperando que apareça então alguém que o descubra e se interesse por ele o suficiente para o trazer de novo à luz.
p. 118
p. 119 "Carta", by Mónica Calle
Mais de cem anos antes, já Gustava Mahler incorporava nas suas grandiosas sinfonias trechos de canções populares, música de rua, a banda sonora dos cafés e outras sonoridades consideradas impróprias para a paleta sonora da orquestra sinfónica. Estava-se na transição entre os séculos XIX e XX na cidade de Viena, onde Mahler tinha consseguido, depois de muito penar, a nomeação para o cargo de director musical da Ópera da Corte, o posto mais respeitável e, diga-se, conservador de toda a Europa. Qual não era então o escândalo quando, ano após ano, o maestro pousava a batuta depois de uma temporada a dirigir óperas e concertos e se retirava para uma cabana no lago durante o Verão, para passados alguns meses regressar à capital com uma sinfonia nova da sua autoria que continha todo o tipo de profanações e blasfémias em forma de música!
Basta-nos a sua primeira sinfonia, terminada em 1888, cujo andamento lento é um exemplo desconcertante de humor negro. Tomando como tema uma conhecida canção -- a velha Frère Jacques --, cedo nos apercebemos de que algo não está bem, pois a música que se ouve é uma marcha fúnebre, o que, juntando uma coisa e outra, leva a pensar na morte de uma criança, tópico altamente impróprio para uma sinfonia. Não se brinca com coisas sérias, não é? Muito menos num tempo em que a mortalidade era um problema bem real: no caso do próprio Mahler, o compositor foi um de catorze irmãos nascidos, dos quais só oito sobreviveram à infância.
Insatisfeito com tamanha imoralidade musical, Mahler ainda não se fica por aqui. Ao fim de alguns minutos, eis que a marcha fúnebre dá a vez a um trecho a fazer lembrar as bandas itinerantes de músicos de rua, com ecos da tradição klezmer e de sonoridades circenses. «É para rir? É que se trata de uma piada de muito mau gosto!», terá pensado o elegante e desconcertado público vienense. Pudera: uma para de saltimbancos a interromper o funeral de uma criança não é coisa para menos.
É só então, passadas estas duas surpresas azedas, que Mahler finalmente introduz a música serena que desde o início se esperava que fosse o andamento lento da sua primeira sinfonia. Só que, quando essa passagem se ouve, já o caldo está entornado.
(...)
Nessa conversa, enquanto caminhavam, Mahler contou a Freud como o seu pai, alcoólico e de temperamento irascível, tinha o hábito de se tornar agressivo com a mãe, não se refreando nem na presença dos filhos. Certo dia, teria o pequeno Gustav uns seis anos, assistiu a uma cena tão violenta que fugiu de casa em pânico. Uma vez na rua, foi dar de caras com um tocador de realejo que passava dando à manivel do seu instrumento, de onde saía a melodia da canção Ach, du liber Augustin, uma popular balada vienense do início do século XIX que toda a gente conhecia.
pp. 124-127
Há também um discurso generalizado sobre a importância de «sair da zona de conforto» e experimentar coisas novas que já se tornou um lugar-comum de quem não tem mais nada para vender, acabando por desvirtuar aquilo que originalmente havia de bom na transgressão dessa malograda zona de conforto que podemos chamar norma.
p. 130
Pode parecer algo esotérico, mas, acredite-se, não o é, até porque quem escreve estas linhas é uma pessoa céptica e profundamente cosmopolita. Porém, não vou mentir, com música minimalista também eu sinto a escuta lenta tomar conta do meu corpo e do meu espírito, e isso é muito agradável. De cada uma das treze vezes em que cheguei ao fim de dirigir a partitura de Na Colónia Penal, ópera de Philip Glass que dura uns meros oitenta e poucos minutos sem pausas, senti-me uma pessoa renovada, perfeitamente incapaz de ouvir música que não fosse minimalista.
p. 147
Pauline Oliveros desenvolveu um método de escuta, que ensinou e deixou por escrito, a que chameou deep listening, ou «escuta profunda», e que é o ponto máximo a que posso chegar neste tema. De acordo com o deep listening -- que, aviso já, levado à letra torna-se uma prática extrema --, a máxima de John Berger de que «a beleza está no olhar de quem vê» evolui para «a beleza está em todo o lado e em cada olhar»
Quem pratica deep listening é capaz de estabelecer uma ligação profunda com quaisquer sons, recebbendo-os de forma tão abstracta e pura que tanto é belo o som de um piano como o barulho de um cortador de relva. Para o deep listener, quaisquer manifestações sonoras podem conter beleza e por isso o ser humano não precisa de se esforçar em produzir mais, podendo dar-se por satisfeito com aquilo que já existe. É, portanto, um dissuasor do consumismo e um indutor de relações mais profundas com o meio que nos rodeia.
p. 148
Também deve interessar-nos o facto de que, na aceitação do vazio enquanto experiência tão válida quanto o preenchido, se revela o respeito pela preservação de uma saudável ecologia do espírito. É a mesma confiança que tem o agricultor que não vê cada pedaço de terra em estado silvestre como uma oportunidade perdida para a cultura intensiva. É o mesmo contentamento que sente alguém que, numa discussão em que se levantam várias vozes, opta por se manter calado mesmo que pudesse ter achas para deitar para a fogueira. É o mesmo grau de satisfação que sente Mark Rothko ao concluir uma tela de grandes dimensões onde o olhar se dilui numa só tonalidade impossível de definir, dispensando outros elementos ou cores. É uma faceta serena embora melancólica gratidão luterana que encontramos na cantata «Ich habe genug», de Bach*.
* A cantata «Ich habe genug» («Tenho o suficiente») é uma das mais populares de Johann Sebastian Bach, em muito devido à sua ária de abertura, pungente e introspectiva, cuja melodia é muito parecida com a da igualmente famosa ária «Erbarme dich, mein Gott» («Tem piedade, meu Deus») d'A Paixão segundo São Mateus.
p. 149
A ideia de que toda a cultura é paritária do ponto de vista social e toda a arte é igualmente válida não será partilhada por toda a gente, nem posso esperar que o seja. No que diz respeito à música, cito o exemplo de Christopher Small, autor de um livro que, em 1998, colocou muitos pontos nos is e levantou questões importantes. Trata-se de Musicking. The meanings of performing and listening to music. Uma tradução possível seria «Musicando. Os significados de tocar e ouvir música». Embora seja escrito por um musicólogo de educação ocidental, o livro parte do pressuposto de que a música não é uma coisa, mas sim um fenómeno. A sua existência e prática configuram uma complexa rede de significados humanos, sociais e rituais. Em resumo, a música é reflexo de cultura, e quanto mais músicas, mais culturas e significados há. A bitola, no entanto, é sempre a mesma, quer seja no meio dos marimbeiros de Zavala, em Moçambique, ou na sala dourada do Musikverein, em Viena. Não há melhor nem pior, só há diferente.
Esta filosofia parte de uma ideia de socialismo cultural, e por isso posso dizer que é engajada. Não se espera que toda a gente esteja de acordo com o socialismo cultural, até porque, se levado ao extremo, vamos dar à anarquia. Se toda a cultura é simplesmente cultura e não há mau nem bom, então tanto faz estudar Os Maias como o Borda d'Água para o exame nacional de língua portuguesa. Os museus escusam de exiir os seus Monets e Vermeers, e podem simplesmente emoldurar recortes de jornal e embalagens de cartão usadas. Não faz sentido estarmos calados durante um concerto quando qualquer forma de estar será uma expressão válida de cultura, mesmo que sejam simplesmente más maneiras. Todas estas ideias e os seus contrários já foram defendidos por pessoas bem informadas que falavam muito a sério.
Se Christopher Small defende que toda a música é um fenómeno igualmente digno e fértil aos olhos da sociologia, e se Pauline Oliveros ensina um método para amar todos os sons por igual, já o exigente esteta Roger Scruton, em A Cultura Moderna, apresenta a visão de uma mente conservadora para quem é preciso, agora mais do que nunca, saber distinguir entre aquilo que é arte e aquilo que é engano, preservando a primeira e estando alerta para o segundo. E como dizer que não tem razão?
pp. 154-155
Nas suas memórias, já por aqui citadas, Philip Glass escreve que, quando era estudante de primeiro ano na Universidade de Chicago, teve de frequentar uma disciplica de Química. O professor era nada menos do que Harold Urey, laureado com o prémio Nobel dez anos antes e que, apesar do seu estrelato académico, fazia questão de ensinar uma cadeira de carácter introdutório, pela oportunidade de insuflar nos caloiros um pouco do seu entusiasmo. Conta Glass:
> O professor Urey dava aulas como se fosse um actor, cruzando a aula de um lado ao outro, com um grande quadro de ardósia pelas costas onde ia gizando gatafunhos incompreensíveis (era-me impossível entender o que ele estava a explicar, só sabia que tinha que ver com a tabela periódica). O seu ensino era como uma performance. Era um homem apaixonado por aquela matéria, e mal podia esperar que estivéssemos todos na sala às oito da manhã para começar a ensinar.
> Os cientistas dese nível são um pouco como os artistas, vivem intensamente apaixonados pelo seu objecto de estudo e Urey não era excepção. Para dizer a verdade, não me lembro de nada sobre química, pois só ia às aulas para o ver actuar.*
* Philip Glass, Words Without Music -- A Memoir, Faber Finds, 2015.
pp. 158-159
Para muitos, David Bruno é como Sacha Baron Cohen a dar forma às personagens de Borat ou Brüno: uma caricatura na vida real ou uma piada que vai longe demais, onde a realidade se mistura com a representação. Nunca se sabe quando a ficção vai acabar e o homem por detrás da personagem se vai cansar de viver numa espécie de Truman Show criado por si próprio. Ou será que ele é mesmo assim e isto é para ser levado a sério?
Ao saber que tinha sido nomeado para os Globos de Ouro, David Bruno reagiu nas suas redes:
> Não interessa o resultado: Gaia já ganhou. Portugal suburbano já ganhou. Portugal rural já ganhou. Os restaurantes que servem refeições em travessas de inox já ganharam.
A verdade é que a música de David Bruno é perfeitamente válida, e não apenas à luz do «tão mau que é bom». É um «mau» bem feito, com atenção ao detalhe, hiper-realista e que resulta de uma análise profunda do objecto retratado. Nesse sentido, é inegável a sua poética própria, apoiada num forte sentido de humor e de comentário sobre a realidade. É assim, por muito que nos custe admitir, que até as caixilharias de alumínio podem ser transformadas em beleza.
p. 163