Vítor Guerreiro, "Filosofia da Música: Uma Antologia"

siiky

2023/09/27

2024/07/31

2024/07/31

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Definition

Jerrold Levinson, "O Conceito de Música"

pp. 52-53

Andrew Kania, "Definição"

Uma preocupação que algumas pessoas têm acerca de definir a música em termos de características musicais particulares, tais como a altura tonal ou o ritmo, é que estas podem ser características de alguma música apenas, talvez da música na tradição europeia (p. ex. Levinson 1990a: 270-271). Isto excluiria incorretamente da definição a música de outras culturas. Sucede, todavia, que a divisão dos sons quer em escalas, consistindo em séries de sons discretos, de altura definida, que se repetem na oitava, quer em compassos, consistindo numa série de batidas iguais, parecem características culturalmente universais da música (Stevens e Byron 2009: 16-18; Stainsby e Cross 2009: 54-56). Isto pode dever-se a todos os seres humanos partilharem a capacidade de produzir e compreender música em virtude da sua história evolutiva comum (ver Wallin, Merker e Brown 2000; Cross 2009.) Se assim for, isto dá-nos outra razão para excluir da música os sons dos animais.

p. 73

Ontology

Stephen Davies, "Obras Musicais e Cor Orquestral"

Se o executante usa tecnologia de substituição para produzir uma versão da Hammerklavier sonicamente indistinguível de uma execução fiel ao piano, talvez pensemos que «faz batota», na medida em que não exibe a perícia necessária para fazer soar a obra num piano, como é típico fazer-se, mas isso é um juízo acerca do executante, não da autenticidade da execução produzida. De igual modo, as qualidades que envolvem os meios de execução, tais como a de ter virtuosismo, pertencem ao executante ou à execução, não à obra em si. As obras não são originais ou invulgares em termos do recurso a instrumentos.

p. 90

This appears to be his understanding of Dodd's philosophy, it's not his own.

Eis as minhas intuições acerca da apresentação com o Sintetizador Timbricamente Perfeito: tenho relutância em considerar o resultado como uma execução, porque as acções características de executar a Hammerklavier, ao longo de quase duzentos anos, não têm aí lugar. Além disso, o som produzido pelo Sintetizador Timbricamente Perfeito é imperfeito na sua representação da sonata de Beethoven; não algumas das características que são constitutivas da obra de Beethoven. Uma delas é o virtuosismo do último andamento. (Se o controlo do Sintetizador Timbricamente Perfeito for difícil de dominar, fazer soar nele a Hammerklavier pode exigir um certo grau de virtuosismo, mas não exactamente o género de virtuosismo pretendido por Beethoven.) Ao contrário de Dodd não vejo razão para pensar que o virtuosismo pertence exclusivamente ao executante ou à execução, por contraste com a obra. É uma característica da obra o ser tecnicamente exigente para o pianista que a executará. Além disso, o som gerado electronicamente não tem o calor humano da execução, o que afecta as características expressivas e outras que pertencem à obra.

p. 92

For a philosophical text trying to define technically what makes music music, it sounds a bit crazy to suggest sound may have something like "human warmth"... The performance/execution of a particular song MAY have a sort "human warmth" quality to it, but not as part of the sound, only as part of the performer/executioner.

A pessoa que escuta o Sintetizador Timbricamente Perfeito emitindo a Hammerklavier não ouvirá nela os gestos e acções expressivas que lhe são apropriados, se permanecer ciente de que o Sintetizador Timbricamente Perfeito gera os sons de acordo com algum programa, cuja autoria, instalação e execução envolvem algo que não tocar piano em tempo real.

p. 93

Not having read about the STP, it seems to the purpose is that it produces sound EXACTLY like the real instrument. Therefore you won't be able to distinguish the two from their sound alone, you must know some other way whether it is e.g. a piano playing or the STP. Therefore it seems silly to say that the "listener hearing the STP playing the Hammerklavier will not hear in it the motions and expressive actions appropriate to it".

Os nossos sentidos evoluíram de modo a nos dar informação relevante acerca do mundo para a nossa sobrevivência. Para o fazerem eficazmente, têm de nos informar acerca da natureza das causas distantes tornando-nos cientes, perceptivamente, dos seus efeitos próximos. Consequentemente, temos em geral experiência não de qualidades do som que sentimos mas de propriedades físicas da sua fonte. Por outras palavras, entendemos as mudanças no som como mudanças na causa do som. Por exemplo, se um percussionista bate no seu instrumento com força decrescente, em vez de seguir as mudanças acústicas subtis e complexas que ocorrem, ouvimos a mudança na força com que o instrumento é percutido.[20] Os indícios colhidos na investigação empírica por musicólogos e psicólogos durante a última década são amplamente interpretados omo sustentando a conclusão de que os ouvintes percepcionam não sons «puros» mas as suas fontes.[21] Tudo isto sugere que a tese de Dodd, segundo a qual o timbre é somente uma propriedade de um som, em vez de uma voz ou de um instrumento que se toca, é tão estranha como a afirmação de que a cor é somente uma propriedade da luz e não do objecto que reflecte a luz.



[20]: Ver A. S. Bregman, Auditory Scene Analysis: The Perceptual Organization of Sound, (Cambridge, MA: MIT Press, 1990). Para discussão complementar na mesma linha, ver E. F. Clarke, «Structure and Expression in Rhythmic Performance», in P. Howell, I. Cross e R. West (orgs.), Musical Structure and Cognition (Londres: Academic Press, 1958), pp. 209-236, e Ways of Listening: An Ecological Approach to the Perception of Musical Meaning (Nova Iorque: Oxford University Press, 2005); J. J. Gibson, The Senses Considered as Perceptual Systems (Londres: George Allen & Unwin, 1968); S. Handel, Listening: An Introduction to the Perception of Auditory Events (Cambridge, MA: MIT Press, 189); P. Shove e B. H. Repp, «Musical Motion and Performance: Theoretical and Empirical», in J. Rink (org.), The Practice of Performance: Studies in Musical Interpretation (Cambridge: Cambridge University Press, 1995), pp. 55-83; N. J. Vanderveer, «Ecological Acoustics: Human Perception of Environmental Sounds», Dissertation Abstracts International, vol. 40 (1979), 4543B; e W. L. Windsor, «Through and Around the Acousmatic: The Interpretation of Electroacoustic Sounds», in S. Emmerson (org.), Music, Electronic Media and Culture (Aldershot: Ashgate, 2000), pp. 7-25.

[21]: Ver N. Dibben, «What Do We Hear when We Hear Music? Music Perception and Musical Material», Musicae Scientiae, vol. 5 (2001), pp. 161-194.

p. 94

This is very interesting! Hitting with the tip of the drumstick on the bell of a cymbal (be it a ride, crash, china, hi-hat, ...) has a VERY particular sound -- it's impossible to get that sounds any other way on a drum kit. Hitting the closed hi-hat's bow with the tip of the drumstick, hitting it on the edge with the shoulder or the shaft, and closing the hi-hat with your foot, all sound different, even if they sound the same to someone who doesn't play drums and doesn't have the experience by watching (and listening to) others play. And I can confirm, when I'm listening to/for drums, I hear "how" the sounds are made.

On the other hand, I don't get the same experience when listening to/for bass or piano, even though I can play a little bit of bass and understand how the piano works. Could it be because "hitting" something is more "primitive" than understanding the vibrations of strings?

Understanding all these details (even though I'm a bad drummer, and can't apply advanced techniques, or even simple techniques in complex rhythms/arrangements), knowing if they're hitting all with the same hand/foot, etc -- greatly improves my experience and appreciation for the music, and the drummer.

I know this example is overused, but godam is this Tomas Haake motherfucker good:

Another example is the snare ghost notes in The Power of Equality by Red Hot Chili Peppers:

Julian Dodd, "Confissões de um sonicista tímbrico impenitente"

Expression

Jenefer Robinson, "Expressão e Evocação de Emoções na Música"

Kivy ataca justificadamente esta afirmação, argumentando por um lado que a música triste pode ou não fazer-me sentir alguma coisa, dependendo de quão boa a música é (as «carradas de música lamentosa» composta por Telemann podem não me fazer de todo sentir grande coisa), e por outro lado que há emoções importantes excitadas pela música que são emoções plenas, comuns, reais, não «truncadas» nem «imaginárias» em sentido algum. Kivy ilustra a sua ideia por referência a uma execução de «Ave verum virginitas» de Josquin, da qual afirma que o comove profundamente.

p. 154

O sentimento que temos de relaxamento no final de Tristão e Isolda, por exemplo, é resultado da muito esperada resolução, depois de mais de quatro horas de constante modulação sem resolução. O sentimento é resultado de uma perceção, mas podemos nem sequer estar cientes da razão por que nos sentimos como sentimos: o efeito do padrão harmónico inconstante afeta-nos «diretamente» sem mediação cognitiva consciente (exceto, evidentemente, aquilo que é exigido pela nossa compreensão do estilo de Wagner). Há alguns indícios psicológicos (de Berlyne e outros) de que as pessoas procuram níveis elevados de excitação para em seguida os fazerem baixar: «a excitação e a informação conflituante, complexa, são procuradas por causa do "estímulo do desafio"» O efeito do acorde final em Tristão pode ser parcialmente explicado nestes termos.

p. 158

No seu célebre livro Emotion and Meaning in Music, Leonard Meyer mostrou como a estrutura formal das obras nos estilos clássico e romântico pode ser analisada em termos das respostas emocionais do ouvinte experiente: a teoria de Meyer era um género de teoria da «resposta do leitor» ou «resposta do ouvinte» acerca da estrutura musical. Para que o ouvinte compreenda uma peça musical, nesta perspetiva, os seus sentimentos têm de ser evocados de um determinado modo. Se estamos familiarizados com o estilo da peça, teremos determinadas expectativas sobre o modo a música se desenvolverá; numa peça musical com significado estas expectativas serão frustradas ou satisfeitas de modos inesperados. À medida que escutamos formam-se constantemente novas expectativas e somos também constantemente surpreendidos por novos desenvolvimentos, sentimo-nos aliviados por resoluções adiadas, tensos com as demoras, etc., etc. Resumindo, compreender a estrutura musical, de acordo com Meyer, não é apenas uma questão de análise distanciada; ao invés, compreender é impossível sem a excitação de sentimento no ouvinte.

Ora, tal como a estrutura formal de uma peça musical pode ser compreendida em termos da excitação de sentimentos coo incerteza, inquietude, relaxamento, tensão, alívio, etc., podemos também compreender a expressividade dessa peça musical em termos da excitação desses sentimentos e de outros semelhantes. Afinal, nas palavras de Anthony Newcomb: «As interpretações formais e expressivas são na verdade dois modos complementares de compreender os mesmos fenómenos.» A expressividade emocional na música não raro correspoonde à sua estrutura formal ou a reflete. A excitação «direta» de emoções cognitivamente «simples», tais como deixar-se surpreender, perturbar, satisfazer, relaxar, etc., é uma pista não só da estrutura formal de uma peça musical, coo mostrou Meyer, mas também da sua estrutura de expressividade emocional. Se uma peça musical é ouvida coo sucessivamente perturbante e apaziguadora, ou como que a vacilar antes de avançar confiantemente, ou como plena de obstáculos superados com dificuldade, isto deve-se pelo menos em parte ao modo como a música nos faz sentir. As passagens perturbantes perturbam-nos; as apaziguadoras apaziguam-nos. As passagens que vacilam fazem-nos sentir inquietude: não é claro para onde a música se dirige. As passagens que avançam confiantemente fazem-nos sentir satisfação: sabemos o que acontece e parece que podemos prever o que acontecerá a seguir. As passagens plenas de obstáculos fazem-nos sentir tensos e, quando os obstáculos são superados, sentimos alívio. É importante notar que o sentimento expresso não é sempre o sentimento evocado: uma passagem incerta, tímida pode fazer-me sentir desconforto; uma passagem confiante pode fazer-me sentir apaziguada ou relaxada.[30]



[30]: Nos seus comentários a uma versão anterior do meu artigo na reunião anual da American Society for Aesthetics, Nova Iorque, 1989, Kendall Walton defende a sua própria perspetiva afirmando que quando a música «efetivamente nos assusta, ou excita ou acalma, "nós" podemos imaginar que estes sentimentos são componentes de outras emoções mais complexas.»

p. 160-161

Nick Zangwill, "Contra a Emoção: Hanslick tinha razão acerca da música"

Tomemos alguns exemplos de descrições emocionais da música. Muito flamento clássico é angustiado; certas passagens da Quinta Sinfonia de Shostakovich são otimistas; muita música tauromáquica para metais é orgulhosa; a guitarre de cordas de aço nas canções country e western de Hank Williams é lamentosa; e os últimos tangos de Astor Piazzolla são meditativos.[7] A angústia, o otimismo, o orgulho, o pesar e a melancolia são emoções intencionais sofisticadas e não meras sensações ou estados de espírito. Isto faz parte da nossa conceção psicológica popular destas emoções.



[7]: Citando um crítico: Sidney Finkelstein escreve nas suas notas à gravação das Sonatas e Partitas de Bach por Szigetti, «Sentimentos trágicos impregnam a primeira parta da sonata [n.° 2 em Lá menor] [...] Dirige-se a um clímax pungente e a um desenlace. A Fuga, embora de carácter impetuoso e positivo, tem insinuações trágicas nos seus impressionantes cromatismos [...]»

p. 169-170

Evidentemente, não se pode negar que por vezes nos emocionamos ao ouvir música. A música pode relembrar-nos um acontecimento emocionalmente intense. Talvez nos entristeça fazendo-nos recordar algo que nos entristeceu no passado. Mas neste sentido puramente causal a música triste pode dar-nos alegria e a música alegre pode dar-nos tristeza. A música triste por vezes dá-nos tristeza, por vezes dá-nos alegria e a música alegre por vezes dá-nos alegria e por vezes dá-nos tristeza; mas isto pouco tem de interessante. O mesmo se aplica aos sentimentos do artista quando faz música. O facto de estar triste pode levá-lo a fazer música triste. Mas pode também não o fazer. Pode levá-lo a fazer música alegre. Muito melhor para contrariar a tristeza! Estas causas e efeitos são irrelevantes para a natureza essencial da música -- para o que a música é.[15]



[15]: Hanslick reconhece que a música pode evocar emoções, tal como ganhar um prémio pode ter o mesmo efeito (Eduard Hanslick, On the Musically Beautiful, p. 7). Mas argumenta, muito corretamente, que tal excitação não é de todo essencial à música.

p. 173

A única esperança que entrevejo para as teorias da expressão é apelarem ao sentido em que se pode «exprimir» uma emoção quando se age de modo arracional sobre essa emoção. Rosalind Hursthouse introduziu a útil categoria de uma ação «arracional».[21] Um exemplo seria arremessar uma caneca contra a parede por fúria a propósito de um corte salarial. Esse ato é inteiramente intencional, mas não inteiramente racional, pois dificilmente se poderá conceber o ato de destruir uma caneca como um meio de reaver o salário. Talvez a música exprima emoção no sentido em que destruir a caneca exprime a minha fúria. Este modelo também parece mais bem ajustado para responder ao problema da manifestação, pois parece qua a minha fúria está de algum modo manifesta na destruição da caneca. Parece muito mais apropriado do que afagar delicadamente uma pena! Contudo, não é claro como a ação arracional pode realmente constituir um modelo para a expressão musical de emoção.



[21]: Rosalind Hursthouse, «Arational Actions», Journal of Philosophy, vol. 88 (1991), pp. 57-68.

p. 182

Comprehension

Roger Scruton, "Compreender a Música"

Embora haja um sentido em que conhecemos sempre a aparência que as coisas têm para nós, o estudo da aparência é apropriado quando os conceitos que a informam estão fora do alcance do observador. Considere-se a curiosa arte de observar aves. Posso saber tanto quanto um observador de aves experiente acerca de ornitologia e no entanto perceciono as coisas de um modo diferente de como ele o faz. Tenho de relacionar o meu conhecimento da anatomia das aves, do seu voo, modo de caminnhar e plumagem, com uma experiência. Tenho de ver, por exemplo, os anéis da tarambola e a sua passada curta e veloz, naquele modo exclamativo que melhor se deixa captar na expressão «tarambola!». Assim, porque toda a nossa perceção é informada por conceitos, e esses conceitos por sua vez determinam a nossa compreensão e o nosso raciocínio prático, um crítico ou um filósofo podem introduzir sistematicidade numa aparência, extraindo as implicações dos conceitos pelos quais é descrita. Esta descrição não tem de poder ser dada por alguém que perceciona com compreensão. Mas quando compreende, essa pessoa reconhecê-la-á imediatamente como uma descrição da experiência que é a sua.

p. 195-196

Fiz diversas distinções: entre ouvir um som e ouvir um tom, ouvir sucessão e ouvir ritmo, ouvir mudança de altura e ouvir movimento, ouvir sons aglomerados e ouvir harmonia. Estas distinções residem na experiência (no seu objeto intencional) e não no objeto material percecionado. Mas é evidente que exigem análise suplementar, em especial dado o facto de que levar essas distinções a sério é concluir que nenhuma criatura desprovida de linguagem ouve música e que nenhuma ave canta. Qual é, por exemplo, a distinção entre ouvir um som e ouvir um tom? seria tentador refugiarmo-nos na analogia com a linguagem, para afirmar que um tom, como uma palavra, é um som prenhe de significado. O meu cão ouve o som «passear» -- que para ele constitui um sinal, um desencadeador de excitação. Mas não ouve a palavra «passear», visto que é surdo ao seu carácter como linguagem. Não é para ele o que é para mim: o ponto de interseção de uma diversidade indefinida de locuções significativas. Não tem, par ele, o carácter audível de uma unidade semântica. Claro que posso frequentemente ouvir palavras que não compreendo -- mas na medida em que as ouço como palavras ouço-as cheias de implicações semânticas e gramaticais, mesmo quando tneho apenas uma ideia muitíssimo vaga do que essas implicações são.

p. 197

Imaginar a metáfora espacial invertida é imaginar uma alteração radical da experiência musical. Se alguém ouvisse como altos os sons que ouvimos como baixos, penso que talvez quiséssemos negar que essa pessoa ouve os mesmos tons que nós. Para ela os compassos iniciais de O Ouro do Reno descem lentamente a partir de uma grande altura; para nós elevam-se a partir das profundezas do universo. Não será essa, muscalmente falando, a maior diferença imaginável? Para nós o solo de violino no «Benedictus» da Missa Solemnis eleva-se como um anjo sobre o crescendo e decrescendo do coro: para aquela pessoa é como uma serpente escura a ondular no abismo.

p. 198-199

Apresentou portanto um exemplo de dois universos que, embora idênticos em todas as suas relaçõe espaciais, não são idênticos nas suas propriedades espaciais. Um consiste numa luva esquerda, o outro numa luva direita. Estas são imagens espelhadas assimétricas e são portanto incongruentes; não se pode ajustar uma ao espaço ocupado pela outra. Pareceu a Kant que esta característica da orientação dava uma razão para identificar o espaço como existente independentemente dos objetos que o ocupam. O exemplo foi generalizado, por exemplo, por Wittgenstein, em Tractatus 6.36111, de modo a sugerir que se pode sempre superar a incongruência acrescentando uma dimensão complementar pela qual se pode inverter a imagem espelhada.

p. 200

Pode ser (embora eu duvide) que devamos considerar as descrições «alto» e «baixo» como dispensáveis, permutáveis, digamos, por «esquerdo» e «direito» ou por quaisquer predicados não metafóricos, definidos sobre o conjunto de sons apenas. Mas como seria dispensar inteiramente da experiência do espaço? O meu argumento sugere que isto envolveria deixar de ouvir orientação na música, caso em que os tons não mais se aproximariam ou afastariam entre si; nenhum trecho musical espelharia outro, nenhum salto seria maior ou mais arrojado do que outros. Resumindo, a experiência da música não envolveria melodia nem contraponto como presentemente os conhecemos. O movimento musical desapareceria, dando a direção lugar à sucessão. Nesse caso, por que continuaríamos a falar de música?

p. 205-206

Se a descrição da música depende tanto da metáfora, talvez pudéssemos concluir que a música, estritamente falando, não faz parte do mundo material. Donde depreendo que qualquer descrição científica do mundo do som não deve mencionar -- como um assunto independente -- o fenómeno da música. Porquanto não há qualquer função explicativa a desempenhar pelo conceito de música que não seja igualmente desempenhada pelo conceito de som organizado: nenhum método científico tem de os distinguir entre si (sendo a extensão de cada conceito idêntica no mundo material). Portanto, pelo axioma da simplicidade, o conceito que descreve a essência material do que é ouvido (o conceito de somm) é o único que temos de usar. A haver um facto adicional é o de que nós (seres de um certo tipo) ouvimos música. A música pertence unicamente à esfera intencional e não ao domínio material. Qualquer análise da música tem de ser um exercício de compreensão intencional e não científica.

p. 206-207

Em vez de me demorar mais no movimento musical, quero agora considerar o ritmo, que é a dimensão da experiência musical que mais visivelmente exibe «atividade». Um exemplo invulgarmente complexo de organização rítmica é dado pelos primeiros três compassos de Parsifal:



[Exemplo 3: two 4/4 bars of music, the first starting with a pause]



Só o oitavo tom deste trecho incide num tempo forte e o ouvinte ouve aí a acentuação. Tudo o que precede este tom está, na sua audição, mantido em suspensão rítmica. É Estremamente difícil descrever esta suspensão. O seu impacto, contudo, é imediato e compreendido logo no primeiro tom. Suponhamos que o trecho era escrito do seguinte modo:



[Exemplo 4: two 4/4 bars of music, representing the "same music" as Exemplo 3, but now starting at the beginning of the first bar]



Talvez a orquestra tivesse produzido um som idêntico em resposta à primeira nota escrita. Mas as instruções para o ouvir (em certo sentido) foram modificadas. O carácter rítmico está agora alterado no ouvido da audiência. Pode parecer bastante extraordinário que se possa ouvir a diferença entre os exemplos 3 e 4 a partir do primeiro tom. Mas temos de relembrar que o carácter rítmico do primeiro tom não uma característica do mundo material do som; pertence ao mundo intencional da perceção musica. O ouvinte ativo pode determinar-se a mudar esse carácter: pode decidir ouvir o exemplo 4 (ou antes, o que o exemplo 4 mais naturalmente representa) em vez do exemplo 3. (O que quero dizer aqui é evidentemente muitíssimo difícil de exprimir, visto que o conteúdo desta decisão é precisamente o que nenhuma forma de notação musical pode determinar.)

p. 209-211

(...) Na verdade, ouvimos este ritmo em todo o género de sons e às vezes, por um ato de vontade, tornamos suportáveis as repetições mais obnóxias (e a seu tempo insuportáveis) ouvindo-as em formas sincopadas. Mas este ato de ouvir ritmo parece ir além da perceção temporal. O ritmo pode não ser percecionado por todos os que percecionam o som e que através dessa perceção adquirem conhecimento de uma ordem temporal. Uma ilustração impressionante é dada pelos ritmos cruzados na música clássica. Por que ouvimos isto:



[Exemplo 5: two independent rhythms playing simultaneously]



e não isto:



[Exemplo 6: the same two independent rhythms, but now woven together, written as a single rhythm]



Não há diferenças materiais entre os sons, mas no primeiro caso há dois ritmos e no segundo caso há um. A resposta é que o primeiro contém dois movimentos musicais (embora do tipo mais simples), ao passo que o segundo contém um apenas. Assim, as nossas capacidades para a perceção espacial e melódica na música orientam a nossa perceção do ritmo.

Tudo isto me leva a duvidar de que os animais ouçam ritmo. Tal como o riso está confinado a seres racionais, também o está a dança. (Só seres racionais podem ser tão perfeitamente sem propósito.) Naturalmente, os animais têm de ouvir a sequência temporal, pois isto faz parte da perceção. Mas será que podem ouvir uma divisão de compasso, um tmepo fraco, uma anacruse, uma suspensão e a pausa? Será que a rola ouve o ritmo subtil que percecionamos no seu chamamento?



[Exemplo 7: the call of a dove?]



Seguramente que sugeri-lo não só é fantasioso como torna misterioso o fenómeno na sua totalidade. Se ouvisse esse ritmo, não se deixaria persuadir pelos méritos de outro? O que há no seu comportamento que exija explicação em tais termos? A experiência animal é-nos acessível apenas porque podemos descrever as suas causas materiais e os efeitos materiais. As distinções que existem puramente no domínio iintencional só podem ser atribuídas a um animal na medida em que se revelam nestas circunstâncias materiais. Mas parece impossível conceber como o comportamento de uma rola teria de ser para lhe atribuirmos não só perceção de sons organizado smas também perceção de ritmo.

p. 211-213

Antes de proceder à análise de exemplos mais complexos de compreensão musical é importante dizer algo acerca da terceira categoria fundamental da experiência musical: a de harmonia. Comentei atrás a importante distinção intencional entre a perceção da harmonia e a perceção de tons simultâneos. No primeiro caso os tons são ouvidos como uma coisa -- um acorde -- no segundo como diversas coisas. A diferença aqui não é entre discórdia e concórdia. Penso que é normal ouvir o seguinte agregado de tons, que abre a segunda secção de A Sagração da Primavera de Stravinsky, como uma acorde:



[Exemplo 8: opening chord of the 2nd section of The Rite of Spring]



Aqui é quase impossível ouvir os tons separadamente e isto não porque os ouçamos como um bloco de som indiferenciado, como em alguns dos «acordes» de Stockhausen. O carácter peculiar do acorde de Stravinsky (em que uma sétima de Mi bemol é espremida, por assim dizer, nos interstícioos de uma tríade de Mi maior) é ser ouvido commo uma entidade musical, espalhado por todo o âmbito da voz no baixo, sem tom algum a «emergir» como principal portador do significado musical. Por contraste, a seguinte célebre concórdia das «Hostias» da Grande Missa dos Mortos de Berlinoz, soando simultaneamente em três flautas e oito trombones, não é frequentemente ouvida como um acorde:



[Exemplo 9]

p. 214-215

(...) O seguinte acorde seria considerado discordante por qualquer pessoa a quem se pedisse para o classificar com base no som apenas:



[Exemplo 10]



Mas no contexto do Noturno n.° 1 Op. 27 de Chopin, em Dó sustenido menor, é simplesmente um elemento numa sequência harmoniosa realizando uma transição. Analogamente, num estilo como o do jazz, em que se adiciona frequentemente notas acessórias aos acordes, é normal ouvir dissonância na discórdia: uma doçura ubíqua da harmonia pode ser a perceção mais usual, de modo que acerca de sonoridades consideradas altamente dissonantes noutros contextos não se sente que precisem de resolução. (...)

p. 216-217

(...) Considere os muitos casos em que os críticos decidem que acorde um compositor está a usar. Qual é, por exemplo, o último acorde de On an Overgrown Path (primeira série) de Janácek? Nenhuma resposta parece adequada, porque o leitor não pode afirmar em que tonalidade a peça terminou -- se no triunfante Mi maior da melodia ou no interrogativo Dó sustenido menor do chamamento da coruja. (...)

p. 218

Malcolm Budd, "Movimento Musical e Metáforas Estéticas"