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2023/11/01
2023/11/01
2024/07/25
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Nuno Cardoso & Mónica Guerreiro
Mais do que uma investigação às origens do mal, As Bruxas de Salém é a narrativa de uma manobra de diversão criada para ocultar as fraquezas dos humanos. Ou como a “nossa suscetibilidade ao medo e ao rumor”, nas palavras do encenador Nuno Cardoso, lança cortinas de fumo sobre crimes perpetrados quando não estamos a olhar.
Mónica Guerreiro: Começo por perguntar se chegas às Bruxas de Salém pela peça em si ou porque te querias aproximar do teatro do Arthur Miller. Nunca te cruzaste com Todos Eram Meus Filhos, Morte de um Caixeiro Viajante, Do Alto da Ponte…
Nuno Cardoso: Conheço o teatro do Arthur Miller e gosto muito. Mas As Bruxas de Salém sempre foi uma peça que me despertou interesse não só pelo macarthismo, em termos históricos -- sou um nerd de História --, mas sobretudo porque há esta dimensão de histeria societal que é recorrente na nossa civilização. Acho muito engraçado o mecanismo que o Miller cria: pega numa história do século XVII e trabalha-a como um drama do século XX. E depois, na carpintaria cénica, mistura a noção que tem de tragédia -- porque há várias tragédias na sua obra -- com o ritmo de comédia, de diálogo. Portanto, tenho de dizer que foi por causa da peça. Se não fosse esta, talvez Do Alto da Ponte me chamasse. Mas, antes, teria de ir ao Macaco Peludo (1922) do Eugene O’Neill. Gosto muito de repertório, leio muito teatro e depois quero fazer muita coisa. É uma questão de escolha.
MG: Essa era a minha próxima pergunta. Como é que surge esta escolha, na sequência das tuas últimas encenações. Se repararmos, Ensaio Sobre a Cegueira poderia ser outro título para As Bruxas de Salém. Também Espectros. Já O Balcão trazia a hipocrisia, a falsidade e o tópico do clero malsão. Pretendes construir uma narrativa com as tuas escolhas de repertório? O que é que As Bruxas de Salém vem completar, sublinhar ou contrariar?
NC: Costuma-se dizer que, como atores, não fazemos diversas personagens; fazemos uma só, de diversas maneiras. E, se calhar, como encenador…
MG: Fazes sempre a mesma peça.
NC: Se calhar. Aquilo que sempre me deixa perplexo é a nossa infinita capacidade, enquanto humanidade, de fazer coisas extraordinárias e a nossa infinita capacidade de fazer coisas más. Eu sou muito sensível -- sobretudo na minha própria conduta -- à cobardia, à hipocrisia, à cegueira… Portanto, de cada vez que pego numa peça, caio tendencialmente nos mesmos temas, de forma diferente. O que torna a coisa complicada, porque as pessoas vão ao teatro para ver coisas novas. E, portanto, a cada peça torna-se um bocadinho mais difícil.
MG: Mas num Teatro Nacional as pessoas esperam que seja revisitado património que de certa maneira lhes é familiar ou estão à espera de descobrir o novo?
NC: Depende. Essa tua afirmação faria algum sentido se estivéssemos a falar da Comédie-Française, de uma prática teatral continuada. Mas, se vires bem, neste momento -- e com todo o respeito por todos os outros teatros de Portugal -- a prática mais continuada de um teatro aberto há algum tempo, sem sobressaltos, é a dos Teatros São João e D. Maria II. E isto dá-nos três gerações, quatro no máximo. Não temos palcos suficientes para mostrar teatro em toda a sua espessura e dimensão, que permita exatamente esse tipo de pensamento: vou ao Teatro Nacional encontrar-me com textos matriciais ou com encenações de repertório. Um Teatro Nacional em Portugal responde a muitas solicitações, a coprodução do jovem criador, o pequeno espetáculo, a primeira obra, e é bom que o faça, porque está a construir uma história. Agora, com a Rede de Teatros e Cineteatros Portugueses, esperamos que o escopo do que é a apresentação das artes de palco se torne mais abrangente e permita então ao TNSJ focar-se na sua missão de produção própria, de serviço educativo, de proteção da língua, tudo isso. Mas, até agora, o trabalho do TNSJ é fazer a sua narrativa, enquanto produtor próprio. É o que eu retiro da prática dos meus antecessores. E essa narrativa tem a ver com a instituição, que é muito maior do que eu, mas também tem a ver comigo. E nesse sentido, desde 2019, há um percurso que começa com A Morte de Danton, passa pela Castro e a reflexão sobre a língua, mas também sobre a família, depois apresenta quase o “lado b” da Morte de Danton que é O Balcão, para reencontrar a dimensão familiar e íntima em Espectros. Mas há outras coisas. No ano passado, o TNSJ internacionalizou-se não só como casa de acolhimento mas sobretudo como casa de criação. Portanto, tanto Iphigénie como Oresteia, como Ensaio Sobre a Cegueira, criam isso. Ensaio Sobre a Cegueira é uma reflexão sobre a sociedade, sobre a justiça, sobre um sistema que tem uma dificuldade e não consegue geri-la. Oresteia é sobre a criação do sistema e como agora as jovens gerações o observam. As Bruxas de Salém é aparentemente mais simples, é sobre a nossa suscetibilidade ao medo e ao rumor.
MG: E os seus efeitos sobre a justiça e a moralidade.
NC: Nós vivemos numa sociedade cada vez mais global, mas refém do “diz que se disse”, uma expressão da minha avó. Agora “diz-se que se disse” nas redes sociais, nos jornais, etc. E esta valorização da opinião leva-nos, como diz o próprio Miller, a não julgar os atos das pessoas, mas a opinião que temos sobre elas. Muitas vezes, chegamos ao cúmulo de comentar um gigantesco acontecimento e depois, quando verdadeiramente olhámos para o que aconteceu, a montanha pariu um rato. E ninguém está a discutir o que aconteceu, mas as opiniões das opiniões. O que é que se passa nesta peça? É a narrativa de um caso de repressão, a partir do medo. As pessoas ficam a debater e a comentar o assunto e isso tira-lhes o foco daquilo que é verdadeiramente preocupante: o capitalismo que está ali a nascer, quando Salém deixa de ser uma sociedade de sobrevivência, começa a exportar e a fazer lucro e passa para uma economia de acumulação. É disso que ainda estamos a falar. Do capital e da luta de classes, que se mantém e que é cada vez maior. No fundo, não passa de um grande sistema para a ofuscação disso, porque o que é valorizado não é a resiliência, não é a honestidade -- é a capacidade de esmifrar um sistema produtivo, gerar cada vez mais acumulação de um lado e criar ruído para entreter os outros. Todo o discurso que existe hoje sobre não-inclusividade é muito equívoco. Claro que é justo. Mas o ódio ao patriarcado está a ser usado para manipular essa causa. O problema é a macroestrutura económica capitalista, que usa a fúria contestatária como forma de acalmar as massas para não verem o essencial, que é a exploração. Portanto, “pão e circo” digital, “pão e circo” em forma de causas, quando o mundo está à beira de mudanças existenciais, como as alterações climáticas, a guerra, o envelhecimento da população, a forma como reagimos à imigração… Esse ruído, às vezes, está na forma de divertimento e, noutras, numa forma ainda mais perversa, em que causas justas são utilizadas e manipuladas para que não pensemos no que é essencial e, portanto, não sermos suscetíveis de ação. Isto reconduz-nos às Bruxas de Salém, porque a dada altura o que se está a discutir não é quem fez o quê, mas a usar um acontecimento para justificar um conjunto de coisas condenáveis que não estão à vista.
MG: Estás a dizer que quem se posiciona a favor, por exemplo, dos direitos das minorias, pode não perceber que esse mesmo discurso também está ao serviço dos opressores…
NC: É uma máxima hegeliana: todos os porta-estandartes de uma revolução se tornam, eventualmente, sustentáculos do sistema. É muito paradoxal, e é preciso ter uma consciência crítica muito trabalhosa de si mesmo e da sua posição como cidadão. Num mundo de aceleração de ruído, isso é cada vez mais difícil. Quando uma pessoa utiliza só uma chave para interpretar o mundo, normalmente divide-o em nós e os outros. Isto no discurso populista e de direita, no discurso liberal, no discurso economicista, no discurso administrativista, mas também no discurso vanguardista e de esquerda. Nesse sentido, bate certo -- pelo menos na minha cabeça -- com A Morte de Danton, porque foram os jacobinos e os girondinos que dividiram pela primeira vez uma assembleia em esquerda e direita. E encontramos isto em As Bruxas de Salém, de uma forma sublimada, obviamente, mas inscrita no tempo do macarthismo e de divisões radicais. Como sempre, a coisa demora mais tempo a chegar a nós, mas este combate entre o que se chama o wokeism e o conservadorismo está a estalar por todo o lado e a causar revisionismos de toda a ordem. E, de repente, não estamos a perceber que o sistema que gerou essas injustiças está a manipular essa discussão a seu favor. Peguemos no exemplo dos Estados Unidos e no combate intenso entre as redes de televisão FOX e MSNBC, em constante extremar de posições. Enquanto estamos agarrados a discutir aquilo, ambas as corporações fazem dinheiro, ambas têm contratos horríveis com as pessoas que lá trabalham e ambas poluem o nosso ar.
MG: A questão da desinformação avant la lettre é central nesta peça. Com outros métodos: a força da fé, ou da crendice; os vários julgamentos (moral, legal, popular); a promoção da delação, até como forma de expiação.
NC: A fé é uma questão de sobrevivência. Eles eram perseguidos na Europa e a fé, o credo, foi um sistema fundamental para sobreviverem. E isto passa-se em termos de sistemas ideológicos, morais, mas também familiares. Depois, chega uma nova geração para quem aquele sistema já não funciona, precisa de outras coisas, então dá-se a obsolescência do sistema, que gera dois movimentos: ou a sua crítica, que leva à revolução e à revolta, ou a sua defesa, que conduz ao conservadorismo e à repressão. E instala-se o que Miller chama diabolismo: a partir do momento em que podes acusar alguém de ser contra, ou seja, quando ser contra é mau, então legitimas a delação. A partir daí já não é delação, é bom e, portanto, estás do lado do bem. E isto funciona. O próprio Miller diz que funciona no regime comunista e no regime capitalista; funciona com os nossos amigos e com os nossos antagonistas. Ou seja, se denunciares alguém por assédio, por exemplo, obviamente estás do lado do bem. Mas a partir do momento em que a denúncia é legitimada, quer dizer, a partir do momento em que a denúncia em si é vista como boa, um mentiroso também a pode fazer. O problema é que não podemos impedir a denúncia, porque ela é fundamental para a justiça. Temos é de criar uma forma de agir perante a denúncia que destrince o trigo do joio. Só que a justiça, que é o fiel da balança, é muito mais lenta do que a justiça popular, ou a justiça digital, ou a opinião pública. Como as instituições não funcionam, porque reagem devagar ou não te dão a resposta que queres, crescem estes movimentos. Há os “papa-causas”, pessoas que se mobilizam em causas continuamente, porque isso lhes dá algum sentido na vida, mas que não contribuem nada para a causa em si. E há os radicais, que estão a alimentar a subida do populismo de direita revanchista, reacionário e muito perigoso. Porque é que esses políticos, do tipo Trump, conseguem fazer-se escutar? Porque ninguém está a escutar as pessoas que os elegem. Um comentador americano dizia que as pessoas votaram Trump para passar uma mensagem aos que estão preocupados com carros elétricos, que é: “Vão à merda, porque eu não tenho emprego.” Eu acho que ele tem razão.
MG: Continuando os paralelismos com a atualidade, há uma ocasião na qual Proctor se desculpa por não ir tanto à igreja porque lhe faz confusão que o padre só pense em dinheiro. Não resisto a perguntar-te sobre a polémica do altar-palco e a forma como os representantes do divino dão tanta importância aos bens materiais.
NC: O caso do altar é muito interessante. O que é o altar? São cinco milhões de euros que se investem numa espécie de escorrega gigante, ou são cinco milhões de euros em que o escorrega gigante vai ser uma alavanca para a recuperação ecológica de sete hectares? E o dinheiro que está a ser investido pelo Estado ou pela autarquia é útil porque recupera aquela área para o lazer e para a população, porque vai permitir um encontro com a fé da maior parte dos portugueses, da sua identidade cultural? Ou é inútil porque é um luxo, vai permitir bastante negócio a um conjunto de pessoas, porque se espera a vinda de milhares? E aqui chegamos ao fundamental do pensamento não-senso comum. Não estou a dizer que o altar é bom ou mau. Estou a dizer que à primeira vista é uma desgraça, é um pecado, mas não é assim que a nossa sociedade funciona. A nossa sociedade não funciona com o senso comum, funciona para o bem comum. Qual é o pensamento justo? Será que a nível simbólico é criticável? Será que a nível económico é criticável? Não sei. Mas o conjunto de argumentos em praça pública não tem tanto a ver com o altar, tem mais a ver com o altar que eu posso fazer para mim mesmo. E isso não é o bem comum.
MG: As Bruxas de Salém permite desenhar um arco temporal: em 2023, a fazer um diagnóstico sobre o que se está a passar agora, encena-se uma peça escrita nos anos 1950 fazendo um contraponto entre o tempo vivido pelo autor e a caça às bruxas do final do século XVII. Que ambiente cénico pretendes evocar?
NC: Interessa-me um ambiente mais metafórico, por isso é que a floresta quase invade o espaço e o espaço invade a floresta. Para mim, ela é o sítio onde as pessoas têm medo. E é a um tempo mental e física, feita de postes de eletricidade. Eles andam vestidos com casacos e coletes e calças que podem ser contemporâneos, mas que podem ser do século passado. Interessa-me criar um espaço de jogo mental. Mas esse arco não é de todo abrangente, não encaixa todo nem na época atual, nem na época de McCarthy, nem na época em que tudo se passou. Há aliás outro discurso que justificaria a razão, também aqui na Europa, desta coisa de chamarem bruxas às pessoas que queriam eliminar. Novamente, foi uma razão económica. As mulheres controlavam a botânica, as mezinhas, as poções, etc., mas os apotecários, que podiam abrir as lojas, eram homens, a propriedade era patriarcal. Basicamente, começa aí o discurso das bruxas: foi uma maneira de libertar espaço para os homens poderem instalar os seus negócios, eliminando a concorrência. Esta é uma interpretação, mas também é só uma narrativa. Todas as narrativas são fenomenológicas, ou seja, só têm sentido aos olhos de quem as conta. Isso é que é interessante na narrativa teatral, porque o que tu montas é uma narrativa que depois é desmultiplicada por seiscentos olhos, os das trezentas pessoas -- espero eu -- que vão assistir todos os dias. Neste caso mais ainda, com esta tentativa de síntese entre cinema e teatro, que também é um artifício, porque isto é teatro, mas toda a estrutura da peça está pensada e montada como se fosse um filme. Que é um jogo para as pessoas aderirem, ou não, e que trabalha conceitos como a quarta parede, a parte cinemática desta peça. É o cinema que te permite sair do palco, com o comentário das didascálias. É um conjunto de conceitos, de sinais, que jogamos para divertir o público -- no sentido brechtiano. Não fui à procura de uma época, como não fui à procura de dizer nada, de fazer uma espécie de statement. Acho que é uma peça curiosa, que abre um conjunto de portas. Como diretor artístico do TNSJ, a minha função é proporcionar essa abertura, como também é ter uma opinião própria, mas tem de estar bem fundamentada. Estas são questões constantes, que me acompanham em cada momento do que é o meu trabalho, até como artista. E são estas questões, para as quais não tenho resposta, que me levam a selecionar os textos que faço e a usá-los como casos práticos, mais para eu aprender, e depois a expô-los ao público, para ver se têm ou não interesse.
MG: O que simboliza para ti John Proctor?
NC: Bom, John Proctor é um cobarde, antes de mais. Ele aproveita-se de Abigail, é claro. Não consegue confrontar-se com isso, aliás, passa a maior parte da peça a dizer: “Eu não fiz. Eu não fiz. Isso nunca aconteceu.” Até que a certa altura, no final do segundo ato, chega à conclusão de que tem de dizer a verdade. E condena-se profundamente. Mas não tem qualquer efeito, isso é que é fascinante. Porque… e extrapolando a tua pergunta: apesar de dizer respeito às mulheres (embora não tenham sido só mulheres a ser perseguidas e condenadas à morte, mas o foco é nas mulheres), a peça tem uma perspetiva muito… chauvinista. Quase todos os discursos são de homens. Porque o Miller analisa isto na perspetiva de um homem norte-americano, anos 1950, casado com a Marilyn Monroe… E é Abigail -- mais do que John Proctor -- quem fica num sítio muito equívoco: porque Abigail tem razão. Abigail, que é uma imigrante, percebe que aquela sociedade acabou, percebe que aquilo não tem sentido. Só que o medo toma conta de tudo e ela é ultrapassada pelo discurso que os outros querem ouvir. Nesse sentido, a peça é esquisita, é imperfeita. Isso atraiu-me. Não consigo conceber que uma feminista, por exemplo, veja esta peça e não fique irritada. Mas também não consigo conceber alguém que defenda o patriarcado e não fique irritado. Porque apesar de assumir que escreveu isto sobre uma causa, o autor, que também é imperfeito, nem sequer presta atenção a uma série de coisas, não as resolve -- coisas que agora são super relevantes, como a questão da paridade.
MG: A esse propósito, no casting confrontaram-se com questões identitárias, questões de género…? A Tituba, escrava que veio de Barbados, é interpretada por uma atriz negra.
NC: Ah, mas a primeira personagem que a Lisa [Reis] fez foi Mary Warren. E Tituba podia ser interpretada por qualquer uma das atrizes, mas depois precisei de uma Betty, e acabou por ficar assim. O elenco residente é paritário, mas o elenco da peça não é. Há mais homens que mulheres. Mas há uma coisa importante a reter aqui, dramaturgicamente, e que o filme vai evidenciar: Parris é um esclavagista. Portanto, se o papel fosse feito por uma atriz branca, escamoteava isso, que é fundamental para percebermos Parris. Por outro lado, discutimos a possibilidade de o fazer em crioulo. Mas chegámos à conclusão de que isso era menorizar, tipificar o crioulo. E Tituba não é isso. Tituba, independentemente da sua cor, é a pessoa explorada. Utilizada por todos. Mas também é a pessoa que sabe o que é o calor. Tem o seu discurso no fim, sobre conhecer o diabo, que o diabo em Barbados não é má pessoa… Ela fala da sensualidade, do sexo.
MG: Como é que vês o episódio do Tudo Sobre a Minha Mãe e a alteração de elenco para incluir uma segunda pessoa trans depois do protesto?
NC: Eu não estou a par. Mas quer-me parecer que o encenador alterou, primeiro, porque não tinha dinheiro, e que quando teve dinheiro voltou à ideia inicial, que era ter duas atrizes transgénero. Cada vez mais sinto que há peças em que não há necessidade de género. São coisas que merecem ser discutidas. Eu troquei o género a personagens do Balcão e do Lear. Acho justo que as pessoas possam ser uma coisa ou outra, porque a peça é uma construção de personagem. Mas sobre as opções dos meus colegas, não tenho grande coisa a dizer. O que posso dizer é sobre o que nós decidimos. Tudo o que apresentamos foi discutido dramaturgicamente entre nós. Se as pessoas não estiverem de acordo, paciência. Esta não é uma peça em que eu possa trocar o género das personagens, ela não permite isso.
MG: Soube-se que uma encenação de À Espera de Godot, de Beckett, na Universidade de Groningen, nos Países Baixos, foi cancelada pelo programador porque o encenador só tinha feito casting de atores, excluindo atrizes.
NC: Mas há uma explicação muito simples para que não haja mulheres no Godot, e que não tem nada a ver com o chauvinismo do Beckett… Logo ele, que escreveu o Dias Felizes, por amor de Deus, um dos monólogos femininos mais belos de sempre! Ora, o que ele quer mostrar no Godot é um mundo à beira do fim, estéril, em que só sobram pessoas estéreis. Que vão morrer de velhos. E depois aquele cruzamento vai ficar vazio. Quando Beckett determina que “só homens podem fazer isto” é porque ele quer dramatizar um mundo em que não há mulheres. Porque a mulher, para ele, simboliza o futuro. Por isso é que no Fim de Partida, por exemplo, põe os pais a sair dos caixotes do lixo, porque foram os últimos progenitores -- já não há mais nada a partir dali. Dos quatro homens de Godot -- Estragon, Vladimir, Lucky e Pozzo -- não vai nascer nada. E a criança que aparece lá, raquítica, é uma coisa quase grotesca. Portanto, Godot é sobre a esterilidade.
MG: Parece-te que este clima de wokeness vai tornar mais difícil o ofício do artista, de apresentar propostas e enfrentar o escrutínio?
NC: Não, não. Até porque nós não temos de ter medo do woke e reagir como salemitas do século XVII. Não podemos reagir a tudo isto, woke ou estudos críticos, como se fosse uma coisa má. Não se pode diabolizar isso. E a nova geração, a da minha filha, já nem sequer pensa em termos de género, naturalmente. Isso é bom. Deixa-me muito confuso, mas é bom. Acho é que as pessoas que combatem por uma sociedade diferente não podem diabolizar quem não caminhe tão depressa como elas, só isso. E essas causas não podem ser instrumentalizadas para camuflar, como disse, para deixar de combater coisas que são bastante mais subterrâneas: a ganância, a vingança, o ódio. Vamos lá ver. É óbvio que somos uma sociedade construída à custa da exploração de toda uma raça, através de um sistema capitalista e racista. Apesar de já terem passado tantos anos, não significa que esteja tudo bem. Tivemos a guerra colonial até há pouco tempo. Mas dizer que a guerra colonial tem de se passar a chamar guerra de libertação é ofuscar a coisa. Sim, foi a guerra de libertação para os moçambicanos; para nós, foi a guerra colonial, e é bom que nos confrontemos com esse nosso passado colonialista. Dizer que já não se aguenta o discurso paritário… Por amor de Deus! A nossa civilização foi feita às costas da mulher, ponto final. Não há discussão sobre isso. Não há discussão sobre a necessidade de paridade de salários, a necessidade de estarmos conscientes das questões ambientais, da imigração. Imigração sempre houve, é uma maneira de o país se refundar continuamente. Somos tão agarrados à nossa matriz grega, não é? Mas de que gregos é que estamos a falar? É que o Homero é aqueu, mas os de Creta são dórios… São várias correntes de imigração. A imigração é boa. A cultura não deve ser protegida com uma cerca: deve estar ativa, deve deglutir, dialogar, transformar. A sua instrumentalização, de vários lados, é que é muito problemática. E porque é que existe? Porque “em casa onde não há pão, toda a gente ralha e ninguém tem razão”. Por baixo disto tudo, a luta de classes continua a existir. A exploração, a redistribuição de riqueza, a acumulação de capital, os mesmos sistemas de exploração ínvios, desmultiplicados e globalizados, continuam a existir. Portanto, seria melhor não começar por discutir a cor do papel de parede da casa quando o telhado está a arder, e não temos alicerces.
MG: E quem ganha com isso assiste, feliz, ao combate fratricida entre pessoas aliadas, que comungam das mesmas causas.
NC: Exatamente. Portanto, estamos num período muito complexo da nossa sociedade. O que é que eu acho? O Karl Kraus escreveu: “Quem tiver alguma coisa a dizer, dê um passo em frente e permaneça em silêncio.” Eu acho que temos de estar mais calados e de dar mais passos em frente. E ir ao teatro, aproveitar estas formas que convocam o nosso silêncio para pensarmos com nós próprios, antes de abrirmos a boca.