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2023/11/01
2023/11/01
2024/07/25
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Nuno Cardoso
Há muitos anos que desejo fazer As Bruxas de Salém, mas não concordava com a tradução do título da peça. The Crucible significava para mim provação, ordálio ou calvário. Não percebia por que razão insistiam em chamar a esta peça As Bruxas de Salém. Hoje, depois destes meses à volta dela, mudei de opinião e acho que o título é mais do que justo.
Esta peça não é tanto sobre as provações das suas personagens como sobre as bruxas que as personagens inventam para não se confrontarem com a realidade dessas provações. É uma história de fugas para a frente.
Seja no século XVII, no Massachusetts puritano, seja na América macarthista da década de 1950 ou seja no Portugal pós-covid do século XXI, nós tendemos com naturalidade para a fuga. A necessária confrontação com as consequências dos nossos atos é sempre substituída por uma desculpa qualquer, uma narrativa que nos conforte e favoreça o escapismo.
Assim foi com a histeria à volta das bruxas em Salém, assim foi com o medo dos comunistas nos anos 1950, assim é hoje na sociedade de praças públicas digitais, em que é mais fácil acusar do que, em silêncio, nos confrontarmos com a pegada da nossa responsabilidade.
O reverendo Hale diz a certa altura que o Diabo, até uma hora antes da sua queda, era considerado por Deus como a mais bela presença no Céu. Hoje, infelizmente, até à hora da nossa queda, ainda acreditamos que somos a mais bela figura das nossas vidas. E, quando chega a hora de cair, mais depressa nos precipitamos numa história da carochinha que preserve essa crença do que nos esforçamos por verdadeiramente nos encararmos.
Bruxas. Dão um jeito desgraçado.