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2023/11/01
2023/11/01
2024/07/25
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Paulo Rangel
1. Em 2023, As Bruxas de Salém, uma obra maior de Arthur Miller, perfaz setenta anos. Continua, para todos nós, públicos de livros e de palcos, a ser uma incessante fonte de inquietude e de desassossego. Ninguém pode quedar-se confortavelmente no seu assento depois de participar da trama e do drama de As Bruxas de Salém. Um drama em que a magia dos grandes ideais religiosos, políticos ou filosóficos e o feitiço das pequenas ambições individuais conjuram para sagrar e expor o mais disseminado dos excessos humanos: a intolerância. Sagrá-lo e expô-lo na forma que, através da história, “politiza” os dramas antropológicos e “dramatiza” as relações de poder: o processo, o processo judicial.
O julgamento -- o processo --, pela sua inafastável dinâmica retórica e argumentativa, é a via de “politização” dos dramas humanos. Mesmo os mais triviais conflitos de comércio ou de família, quando são alçados à barra do tribunal e entregues à dialéctica processual, acabam por destapar e revelar a dimensão política -- no sentido de dimensão relacional de poder -- de todas as relações humanas. Por maioria de razão, o cromossoma da política aflora e evidencia-se quando são as questões de fé, de crença ou de convicção que consubstanciam o objecto do processo, o âmago do litígio. Nem todos se dão conta disso, mas a “judicialização” de um conflito confere-lhe natureza comunitária ou pública; dito de outro modo, revela, atesta e conforma a sua dimensão autenticamente política.
O processo jurisdicional, por outro lado, com a sua solenidade, o seu ritualismo e a sua abertura, também “dramatiza” as relações e os conflitos, até no sentido mais próximo de que os “teatraliza”, de que lhes confere “teatralidade”. O processo judicial é sempre uma reconstrução da realidade, uma representação do real. Tudo ali evoca o teatro e a sua capacidade de dramatização e representação. A sala de audiências, pela sua disposição formal, recorda a centralidade do palco e a relação assimétrica com o público. Este, pela sua proximidade e imediação, bem como pela limitação da lotação, assemelha-se ao público da sala de teatro. E o carácter performativo, único e irrepetível, de cada sessão de julgamento aponta para a autenticidade e a irreversibilidade da representação. Os acontecimentos da vida quotidiana, quando transportados para o processo judicial, adquirem uma forma e uma expressão plástica que dramatizam -- também no sentido de que exponenciam -- o conflito em pleito e as relações de poder subjacentes. Por via de regra, o processo favorece e produz um clímax no substrato relacional de que se ocupa. Não pode por isso estranhar-se que o teatro tenha tido sempre uma grande atracção pelos processos judiciais ou, ao menos, pelas suas narrativa dialéctica e estrutura retórica.
A escrita de As Bruxas de Salém implicou uma investigação aturada dos arquivos dos julgamentos que tiveram lugar na vila de Salém em 1692-93 e de todos os outros que, alguns anos depois, os haviam de revogar, denunciar e reparar. Daí que a obra exiba um vezo processual, com uma clara ressonância jurídica, prenhe de referências que apontam para princípios bem conhecidos dos processualistas, como o inquisitório e o acusatório. Arthur Miller glosou mesmo expressões e frases de juízes, oficiais e réus colhidas naqueles arquivos. Não é necessário chegar à fase formal de julgamento, no Acto III, para reconhecer momentos típicos de um procedimento judicial. O nascimento das queixas, os mecanismos de delação, a indagação policial, as detenções, as recolhas de prova ou até o teor dos diálogos -- todos estes desenvolvimentos, apesar de precederem o julgamento, decorrem num jogo e numa economia retórica indubitavelmente jurídica, litigiosa, processual. As marcas que deram fama e proveito a esta obra são decerto outras, mas a intelecção e a denúncia da instrumentalização e manipulação das formas jurídicas não serão decerto uma marca menor. O poder, para se legitimar ou para aparentar uma legitimidade, carece sempre de uma justificação. Não se contenta com o silenciamento, o desterro, a prisão arbitrária ou a eliminação física dos “perigos públicos”. Precisa da legitimação pelo processo. Não basta matar; é preciso condenar.
2. O ambiente religioso das colónias britânicas da costa leste norte-americana foi cunhado pela emigração de fiéis protestantes, puritanos e fundamentalistas, empurrados pelas guerras religiosas do século XVII e pela guerra civil inglesa. Ainda hoje, como prova o recrudescimento das seitas evangélicas, esse genoma puritano exerce uma presa considerável. Este culto protestante fundamentalista alimenta-se do maniqueísmo, profundamente arreigado na “cosmogonia cristã” de luta entre Deus e o Diabo, entre o Bem e o Mal. As bruxas faziam pactos “faustianos” com Satanás e chegavam a lavrar a sangue a assinatura no seu livro negro. A ideia de Satã e do Inferno era uma referência permanente, tão importante como a de Deus. A obsessão dos crentes com o Inferno e o seu uso pelos ministros do culto pode bem resumir-se num dos diálogos do Acto I entre o Reverendo Parris e John Proctor: “Ou se pratica a obediência ou a Igreja arde no Inferno”; “O senhor não é capaz de falar um minuto sem irmos parar ao Inferno outra vez? Estou farto do Inferno!”
É por demais sabido e consabido que Arthur Miller se decidiu a escrever esta obra para denunciar a perseguição empreendida pelo senador McCarthy e pelo denominado “macarthismo” aos suspeitos de militância ou simpatia comunista. Miller, ele próprio perseguido como tantos intelectuais e artistas coevos, viu na intenção, nos métodos e na obsessão macarthistas enormes paralelos com a milenar caça às bruxas e, em particular, com os eventos ocorridos em Salém no final do século XVII. Os métodos e os interrogatórios usados pela Comissão de Actividades Antiamericanas, que chegou a ditar a sua condenação, eram inquisitórios e capciosos, bem no estilo de múltiplos passos do texto. Bons exemplos estão em alusões culpabilizantes de Thomas Putnam, “A coisa está à mostra!”, e, bem assim, do Reverendo Parris: “Temos todo o tipo de gente licenciosa nesta vila!” Ou na pergunta ardilosamente gentil do Reverendo Hale: “Quem foi a ti juntamente com o Diabo? Duas pessoas? Três? Quatro? Quantas pessoas?” Ou ainda na pergunta desabrida do Reverendo Parris: “Quem? Quem? Os nomes, os nomes!” Todo o processo investigatório e inquisitório se alimenta do rumor, do boato, da suspeita, da notícia falsa. Esquema que alastra e cria uma histeria comunitária, pautada pela desconfiança sistemática, que leva à intriga de todos contra todos, que estimula as denúncias falsas para salvar a própria pele, que engendra conversões e confissões oportunistas, que organiza afinal a fúria punitiva e redentora.
Será o próprio Miller, no notável ensaio publicado na The New Yorker, “Porque escrevi As Bruxas de Salém”, a alargar a abrangência do transe da peça. A título de exemplo, estalinismo, revolução cultural chinesa, Chile de Pinochet. Lembra até que ironicamente os cultos satânicos são agora bem mais frequentes do que no tempo das perseguições seiscentistas. Esta maturação do texto, assumida e patrocinada pelo próprio Miller, autoriza-nos a descortinar quem serão as bruxas, as crianças e os vizinhos de hoje, onde pululam os denunciantes e delatores, por onde trepidam as correntes histriónicas de fúria colectiva, em que sede sentenciam e executam os novéis juízes, meirinhos e algozes. E, olhando para as sociedades anglo-saxónicas, é quase impossível não ver uma nova caça às bruxas na obcecação com o “politicamente correcto” e na diabolização dos que não o seguem com zelo e brio. Zelo e brio que fazem jus àquela tirada sacramental do “pseudocientificismo” do Reverendo Hale: “Não podemos chamar a superstição a isto. O Diabo é rigoroso.” O lídimo expoente do politicamente correcto estará quiçá na cultura woke e nos seus mandados de banimento e de cancelamento, na imposição do cânone de uma novilíngua, na necessidade censória de refazer livros e romances e de retocar filmes ou álbuns de banda desenhada. Num ápice, todo um mundo que era (injustamente) associado à Idade Média, às suas trevas e às fogueiras que nelas se urdiam, está de regresso. Um mundo que as redes sociais absorvem e propagam, em doses replicadas de profecias que se cumprem e amplificam a si mesmas. Na aldeia ou vila global, os boatos e as falsas notícias geram julgamentos populares em que, amiúde, a turbamulta manda soltar Barrabás e executar Jesus. Como lapidarmente adverte o imperturbável Reverendo Hale, algures no Acto II: “Estes são novos tempos, senhor!”
3. Esta ideia, muito propalada, de que a obra faz a denúncia de grandes torrentes sociais de cariz maniqueísta e persecutório, com suporte e quadro institucional, deixa na sombra uma outra dimensão fundamental: a dimensão antropológica e pessoal. Na verdade, na ecologia do texto, o mundo dos desígnios e ambições pessoais tem um lugar insubstituível. Apesar de o propósito político ou social ser essencial, Miller nem por isso reduz ou diminui a importância da variável humana. As personagens não são dissolvidas na corrente do ânimo religioso salvífico e supostamente redentor; elas nadam e naufragam no meio dela e cada uma consegue ser quem é e sabe quem deseja parecer. Cada uma a seu modo, segundo o seu interesse e o seu carácter, vive e tira proveito da onda político-social para melhor se posicionar. Da cupidez do Reverendo Parris à ganância fundiária dos Putnam, da concupiscência da tormentosa Abigail à culpa libertadora de John Proctor, da fidelidade “científica” do Reverendo Hale à quietude moral da Comadre Proctor, da inimputabilidade arrependida de Tituba à vulnerabilidade volúvel de Mary Warren, do amor ao cargo do Vice-Governador Danforth à perda precoce de um porco por Walcott. Cada personagem projecta e perfila no curso da acção o seu interesse, a sua moral, a sua personalidade. Por experiência própria, Miller sabe que as vagas persecutórias são momentos da verdade, onde a glória e a miséria humanas determinam o rumo dos acontecimentos. As traições, as vinganças, os ajustes de contas, os negócios, os amores, os desamores, o medo, o ódio e a subserviência, a busca da salvação e da justiça ou a simples decência ou dignidade interferem na grande demanda religiosa e político-social. Não podiam ser mais preclaras as palavras de John Proctor a chegar ao final do Acto II: “Eu lhe digo o que é que anda à solta em Salém -- a vingança anda à solta em Salém.” Ou as do Reverendo Hale, em pleno julgamento: “Já não posso calar a minha consciência -- a vingança privada está a fazer a sua obra através deste testemunho!”
4. Para lá de tudo isto, As Bruxas de Salém deixa outrossim um enorme legado jurídico e político, talvez mesmo constitucional, muito pouco valorizado: o da ânsia -- ou será ansiedade? -- por um processo justo. Convém não esquecer que a revisão dos processos fraudulentos de 1692-93, logo começada em 1697, teve uma influência histórica no reforço das garantias do “due process” em todo o direito norte-americano.
A exposição de uma panóplia de argumentos capciosos e de vícios lógicos evidenciam a sistemática presunção de culpa e a condenação antecipada. Os mais atrabiliários nexos de culpa são assumidos com base em analogias bíblicas. Quando Proctor invoca o percurso exemplar de Rebecca Nurse para desvalorizar a suspeita, logo contrapõe o Reverendo Hale: “Homem, lembra-te, até uma hora de o Diabo ter a sua queda, Deus julgava-o o mais belo entre os anjos do Céu.” Ou, mais à frente, no diálogo entre Proctor e o Reverendo Parris: “O senhor lê os Evangelhos, Sr. Proctor? Não me parece, ou saberia com certeza que Caim era um homem honesto, e todavia matou Abel.”
A réplica do Juiz Hathorne ao clamor de inocência de Martha Corey é gravíssima por se tratar de uma grosseira manipulação linguística. Diz ela: “Estou inocente de bruxa. Não sei o que é uma bruxa.” Retorque o juiz: “Como é que sabe, então, que não é vossa mercê uma bruxa?” Ainda mais sério é o condicionamento absoluto da confissão, que, no processo inquisitório, era a rainha das provas. Em processos de bruxaria, dado o carácter essencialmente invisível do crime, só as alegações das vítimas e as confissões dos réus podiam valer. Afirma peremptoriamente o Vice-Governador Danforth: “Os que não confessarem serão enforcados.” O tribunal premeia assim a confissão, que muitos farão com o único fito de evitar a morte. Ainda no Acto II, alvitra Hale: “Eles confessaram, todos.” Esclarece pedagogicamente Proctor: “E porque não, se acabavam enforcados por negá-lo? Há muita gente capaz de jurar o que quer que seja, em vez de pendurar na forca. Nunca pensou nisto?”
Este modo de actuação cria um ambiente de temor e receio no tribunal, assaz hostil ao decurso de um julgamento justo. A dada altura, já ciente da fraude em curso, salienta Hale: “Não podemos fechar os olhos mais tempo. Há um medo prodigioso a este tribunal nesta província.” A que Danforth contrapõe: “Nenhum homem incorrupto deverá temer este tribunal, Sr. Hale! Nenhum!” Eis o que está em linha com a atitude dos juízes em face das garantias de defesa e da presença de advogado. Quando Proctor alega “Não sou advogado”, Danforth interrompe-o e sentencia: “Os puros de coração não precisam de advogados. Prossiga como achar melhor.” Daí que Hale, mais tarde, rogue a Danforth: “Em nome de Deus, parai por aqui. Mandai-o para casa e deixai-o voltar aqui com um advogado.” Com efeito, a pergunta de Hale tine e ressoa: “Será que toda a defesa é um ataque ao tribunal?”
Clássico em todos os processos injustos, impressiona sobremaneira o recurso à tradicional “razão de Estado”, que invariavelmente faz da justiça uma paródia ou uma farsa. A dada altura, percebe-se que Danforth está consciente da fragilidade das condenações e invoca explicitamente a defesa da reputação do tribunal e da sua credibilidade para manter as suas disposições. Implora Hale: “O senhor tem de perdoá-los.” Replica Danforth: “Eu não posso perdoar estes, quando doze já foram enforcados pelo mesmo crime. Não é justo.” “O adiamento nesta altura iria apregoar uma indecisão da minha parte. O indulto ou perdão lançaria dúvidas sobre a culpa daqueles que morreram até agora.” Em poucas palavras, a reputação da instituição é mais importante do que a justiça da condenação.
O valor constitucional e a riqueza jurídica do texto está muito para lá do que se possa arrazoar nestas linhas. Elas visaram apenas encarecer um aspecto que permanece fortemente apagado e esquecido. Em As Bruxas de Salém, Arthur Miller legou-nos uma referência fundamental para a cultura judiciária do Ocidente e da humanidade. Para lá do reduto moral indestrutível da consciência (“Eu não te julgo. Há um magistrado dentro do teu coração que é quem te julga.”), todo o ser humano tem o direito inalienável a que a comunidade lhe faça justiça. Justiça justa. As Bruxas de Salém prova que mais nenhuma serve.